Por Dentro do Sistema Financeiro: os novos bancarizados, do PIX à inteligência financeira popular
Nos últimos cinco anos, o Brasil atravessou a mais profunda transformação financeira de sua história recente. A criação do Pix, o avanço das fintechs e a implementação do Open Finance expandiram o acesso ao sistema bancário a milhões de brasileiros antes excluídos.
Essa revolução digital, entretanto, vai muito além de aplicativos e QR Codes: ela redefine o que significa “ter uma conta bancária” — e, mais amplamente, o que significa participar da economia.
Se antes a bancarização era um processo físico e institucional, hoje ela é algorítmica e instantânea. O celular tornou-se agência bancária; o CPF, identidade financeira.
O fenômeno dos “novos bancarizados” revela uma ambiguidade central: por um lado, emancipa populações marginalizadas; por outro, integra-as a um sistema de dados e dívidas em escala sem precedentes.
A bancarização e o mito da inclusão
A inclusão financeira, segundo o Banco Mundial (2023), é a “integração de indivíduos e empresas ao sistema formal de pagamentos, crédito e poupança”. No Brasil, esse processo começou de forma mais intensa após o Plano Real (1994), expandindo-se com o Bolsa Família e os programas de microcrédito da década de 2000.
Contudo, a expansão digital rompeu com o modelo tradicional: a partir de 2015, com o surgimento de fintechs como Nubank, Inter e Mercado Pago, o sistema financeiro deixou de depender de agências físicas e passou a operar na palma da mão.
O conceito de “inclusão” passa, assim, a se confundir com o de captura digital. Como alerta Shoshana Zuboff (2019), no capitalismo de vigilância o dado substitui o dinheiro como forma de poder: cada transação revela hábitos, vulnerabilidades e perfis de crédito. A bancarização massiva pode, portanto, gerar novas assimetrias de informação entre cidadãos e instituições.
O Pix e o tempo real como política pública
Criado pelo Banco Central em 2020, o Pix não é apenas um meio de pagamento — é uma infraestrutura nacional de liquidação instantânea, disponível 24 horas por dia. Seu sucesso é avassalador: em 2025, já supera 700 milhões de chaves registradas, ultrapassando cartões e transferências tradicionais (BACEN, 2024).
O Pix trouxe para dentro do sistema formal milhões de trabalhadores informais, pequenos comerciantes e beneficiários de programas sociais. Ele diminuiu o custo de transações, aumentou a velocidade do dinheiro e reduziu a dependência de intermediários.
Por outro lado, o Estado e as plataformas passam a conhecer em tempo real os fluxos de renda da população. A instantaneidade, que parecia libertadora, converte-se em um instrumento de rastreabilidade permanente. O dinheiro, que antes circulava no bolso, agora circula em nuvem — e deixa rastros.
Open Finance e a era dos dados bancários
Com o Open Finance, o cidadão pode autorizar o compartilhamento de seus dados financeiros entre instituições. O objetivo oficial é promover concorrência e personalização de serviços. Na prática, contudo, abre-se um campo delicado: quem realmente controla essas informações?
Ao permitir que empresas e algoritmos definam perfis de crédito com base em comportamento digital, o sistema cria novas formas de exclusão invisível — a chamada data poverty (pobreza de dados). O crédito, que antes dependia da renda, agora depende do padrão de navegação, do horário das transações, do tipo de celular usado.
Essa transformação insere o Brasil na vanguarda da economia de dados, mas também exige um novo conceito de cidadania financeira, capaz de equilibrar inovação e soberania digital.
O perfil dos novos bancarizados
Relatórios do Banco Central (2024) e da Febraban (2023) mostram que os novos bancarizados se concentram em três grandes grupos:
-Jovens de 16 a 25 anos, digitalmente nativos e com contas em fintechs.
-Mulheres chefes de família, atraídas por programas sociais digitalizados (Auxílio Brasil/Pix).
-Trabalhadores informais e MEIs, que passaram a usar o Pix como substituto de maquininha e conta PJ.
O crescimento é mais acentuado no Nordeste e na Amazônia, regiões historicamente marginalizadas do sistema financeiro tradicional. Ao mesmo tempo, mais de 80% das transações bancárias no Brasil já ocorrem por canais móveis, em um sinal claro de que o celular passou a substituir a agência bancária.
Efeitos econômicos e sociais
A bancarização digital produziu efeitos ambíguos: de um lado, ampliou o acesso ao crédito — mesmo que de forma limitada e, muitas vezes, mais cara. As fintechs popularizaram o microcrédito via aplicativo, oferecendo valores de R$ 100 a R$ 1.000 com aprovação instantânea.
De outro, o endividamento cresceu entre as classes C e D por conta do consumo digital e crédito fácil. Segundo o Serasa (2025), quase metade dos novos bancarizados estão inadimplentes em até dois anos após abrirem suas contas digitais.
O fenômeno também impactou a economia popular. Vendedores ambulantes, artesãos e pequenos prestadores de serviço passaram a usar o Pix como principal meio de pagamento. Em muitos casos, o Pix é o primeiro contato dessas pessoas com o sistema financeiro formal.
A inclusão, portanto, não é apenas monetária — é também simbólica: transforma o status de “sem-conta” em “cidadão financeiro”.
Endividamento nas alturas
A ampliação do acesso ao crédito levou também ao aumento do endividamento da população:” dados divulgados pelo Serasa (2025) mostram que 27% das dívidas sem pagamento no mês de setembro eram com bancos e cartões de crédito.
Em seu recente Relatório de Estabilidade Financeira, o Banco Central afirma que a capacidade de pagamento das pessoas físicas “continua desafiadora, sob impacto da participação elevada de modalidades mais caras”.
O gráfico abaixo mostra o quanto da renda do trabalhador está comprometida com dívidas, e como a dívida feita com cartão de crédito manteve trajetória constante de crescimento desde 2020 – instrumento este que facilitou a entrada de milhares de pessoas seja aos serviços bancários, seja a novas ferramentas de crédito por restrição nas instituições tradicionais.

Fonte: Banco Central do Brasil
A autonomia em disputa
Contudo, o que está em jogo não é apenas o acesso, mas o controle. A inclusão digital coloca milhões de brasileiros sob a lógica de algoritmos opacos. O cidadão bancarizado é, ao mesmo tempo, cliente e produto: seus dados alimentam modelos de risco, propaganda e crédito direcionado.
Como aponta Manuel Castells (2010), as redes digitais criam novos centros de poder — e quem controla a infraestrutura controla a narrativa. A verdadeira emancipação financeira popular exigirá educação digital, regulação e soberania sobre os dados. O Estado deve garantir que a inovação tecnológica não substitua a política pública. A inclusão não pode ser confundida com vigilância.
Revolução em andamento
A nova bancarização brasileira é um fenômeno paradoxal: libertadora e controladora, democrática e assimétrica. Ela representa uma revolução silenciosa, que incorporou milhões ao sistema financeiro, mas também consolidou um modelo de dependência tecnológica e informacional.
O Pix e as fintechs criaram uma nova fronteira da cidadania — uma cidadania mediada por aplicativos. O desafio das próximas décadas será transformar essa inclusão em autonomia financeira popular, e não em submissão algorítmica.
Para tanto, será necessário:
-Garantir educação financeira pública e digital.
-Criar mecanismos de transparência sobre o uso de dados pessoais.
-Fortalecer bancos públicos e moedas sociais (como a Mumbuca de Maricá).
-Recolocar o interesse social no centro da política monetária e tecnológica.
Em última instância, a revolução dos novos bancarizados não será apenas tecnológica: será política. O dinheiro digital pode ser o novo elo da cidadania — ou sua nova coleira.
Por Tatiane Correia – matéria do Jornal GGN em parceria com a Contraf-CUT
